Nos últimos anos, os Estados Unidos lideraram a corrida global pelo desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial (IA). Entre 2018 e 2023, vultosos investimentos públicos e privados permitiram que o país ocupasse o topo do ranking criado por especialistas da Universidade Stanford para medir os esforços de um grupo de nações para criar ou aprimorar soluções que permitam às máquinas realizar tarefas cada vez mais sofisticadas – seja na forma de um assistente digital capaz de interagir com o usuário, respondendo a comandos de voz e texto, seja na forma de ferramentas de busca mais precisas.
Conforme o mais recente relatório da Universidade Stanford, publicado no ano passado, de todos os “modelos notáveis” de IA lançados ao longo de 2023, 61 resultaram dos esforços de instituições e desenvolvedores sediados nos EUA, superando os 21 modelos apresentados pela União Europeia e os 15 da China. Dos 36 países avaliados na ocasião, o Brasil terminou na 34ª posição, à frente da Nova Zelândia e da África do Sul.
Notícias relacionadas:Empresas de IA dos EUA elogiam feito da DeepSeek e fazem autoavaliação.Startup chinesa de IA gera tombo global em ações de tecnologia.Não sou o substituto do Google, afirma ChatGPT ao ser entrevistado.Seguindo o exemplo estadounidense, outros países decidiram investir grandes somas em dinheiro na pesquisa em IA. Principalmente a China e algumas outras nações asiáticas (Japão, Índia, Malásia e Coreia do Sul), que, rapidamente, transformaram-se em uma força motriz que ajudou a impulsionar o crescente número de novas patentes registradas em todo o mundo. E consolidando a crença em que, para ter sucesso nesse setor, seria preciso cada vez mais dinheiro para custear estruturas computacionais cada vez mais sofisticadas.
De acordo com o relatório da Universidade Stanford, em 2023, “os custos de treinamento de modelos de IA de última geração atingiram níveis sem precedentes”, com os 36 países analisados investindo em torno de US$ 25,2 bilhões no desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial. Só a Google gastou cerca de US$ 191 milhões para alimentar ao seu Gemini Ultra com as informações computacionais necessárias para habilitá-lo a aprender a identificar padrões e criar conexões por si só. Já a OpenAI gastou cerca de US$ 78 milhões para “treinar” o GPT-4.
“Ao longo dos últimos anos, na medida em que os algoritmos e as soluções de inteligência artificial foram avançando, o mercado se preparou para funcionar com uma determinada estrutura de custos de processamento [de dados] e de equipamentos”, explicou o coordenador do MBA de Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV), André Miceli, à Agência Brasil.
Toda esta “estrutura” sofreu um abalo em 20 de janeiro deste ano, quando a startup chinesa DeepSeek apresentou ao mundo seu assistente virtual (chatbot) DeepSeek R1. Modelo que, segundo a própria empresa e especialistas, combina custos de produção significativamente menores que os dos concorrentes e soluções computacionais eficientes, capazes de entregar, gratuitamente, resultados parecidos e, em alguns aspectos, superiores aos de outros assistentes de ponta, pagos.
De acordo com a própria DeepSeek, seus desenvolvedores obtiveram resultados semelhantes aos dos concorrentes gastando em torno de US$ 6 milhões, ou o equivalente a aproximadamente R$ 35 milhões. Além disso, ao contrário das grandes empresas de tecnologia (bigtechs), a DeepSeek decidiu disponibilizar o acesso ao chamado código-fonte do R1, permitindo a qualquer interessado conhecer o conjunto de instruções usado para criar o programa.
“O aspecto mais importante dessa nova tecnologia é mostrar que o volume de recursos necessários para competir em IA não é inalcançável para países como o nosso”, afirmou a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, em entrevista à CNN, no último dia 30.
Assistente virtual DeepSeek R1 foi lançado em janeiro – Reuters/Dado Ruvic/Proibida a reprodução
Para especialistas ouvidos pela Agência Brasil, a real dimensão do feito da startup ainda é incerta, principalmente quanto ao investimento feito, já que o valor anunciado pela DeepSeek parece não levar em conta os investimentos prévios que o governo chinês fez a fim de dotar o país da estrutura necessária ao desenvolvimento de múltiplas plataformas de IA. Ainda assim, segundo esses mesmos especialistas, os resultados já conhecidos sinalizam que a DeepSeek desafia a hegemonia das gigantes estadounidenses e pode ajudar o mercado a redefinir os parâmetros da corrida global pelo desenvolvimento da IA. Tanto que, ao tornar-se um dos assistentes virtuais gratuitos mais baixados das lojas online, o R1 abalou o Vale do Silício, causando uma queda nas ações das empresas de tecnologia.
“A grande diferença entre o DeepSeek e o que tínhamos até então é a característica do ambiente necessário para o sistema funcionar. Aparentemente, ele vai fazer praticamente a mesma coisa que o ChatGPT, que, hoje, é a ferramenta mais usada, com uma estrutura de processamento mais simples, que consome entre 15% e 20% da quantidade de recursos computacionais necessários. Isso mexe em toda a estrutura que vinha se desenhando longo dos últimos anos. Por exemplo, podemos não precisar mais de tanta energia elétrica quanto imaginávamos que seria necessário para rodar programas sofisticados de inteligência artificial”, acrescentou André Miceli.
Disruptivo
“Este é um momento transformador”, afirmou o cientista de inteligência artificial Rodrigo Clemente Thom de Souza, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“Diziam que a China estava muito atrás dos EUA na corrida pela inteligência artificial. Isso se mostrou uma falácia. Segundo ponto: até onde se sabe, o DeepSeek foi desenvolvido com um investimento absurdamente menor que o dos assistentes de IA norte-americanos – o que, por si só, já torna o efeito impressionante, um feito histórico”, destacou o pesquisador.
“Outros dois pontos muito importantes: o DeepSeek é gratuito, e o modelo disponibilizado é feito em código aberto, o que significa que desenvolvedores do mundo inteiro podem aprimorar seu código-fonte e criar versões ainda mais avançadas a partir do modelo inicial”, destacou Souza, garantindo que a arquitetura do sistema computacional do DeepSeek, ou seja, a forma como o conjunto de instruções básicas necessárias para que o sistema funcione, “já está sendo comparada a trabalhos acadêmicos disruptivos para o campo da IA”.
“O grande diferencial do DeepSeek é que, enquanto os modelos das empresas norte-americanas dependem de hardware avançado, de chips de última geração, os desenvolvedores chineses alcançaram resultados impressionantes usando equipamentos supostamente menos sofisticados, menos potentes. Graças ao desenvolvimento de algoritmos inovadores”, acrescentou Souza, frisando que os resultados obtidos pela DeepSeek podem desestimular investidores a seguirem destinando cifras muito superiores para outros projetos e empresas. Ainda que, para chegar a um modelo de US$ 6 milhões, a DeepSeek tenha se beneficiado de investimentos bilionários que o Estado chinês fez na indústria de base ao longo dos últimos anos.
Diretor do Departamento de Engenharia de Computação da Universidade de Taubaté (Unitau), Dawilmar Guimarães de Araújo acredita que o sucesso do DeepSeek gerará reações das concorrentes, que tendem a ajustar seus modelos de negócios para tentar reduzir custos, o que pode ajudar a democratizar o desenvolvimento de tecnologias baseadas em inteligência artificial. Ele também destaca o fato de a startup chinesa ter disponibilizado o acesso dos interessados ao código fonte do produto, embora sugira que ainda é preciso esperar pelo desenrolar da disputa comercial. “Aguardemos para ver o que a DeepSeek fará com os próximos modelos.”
*Colaborou Vitor Abdala.